Retrato dos portugueses<br> quando velhos
Antes do mais, perdoe-se a utilização em título de uma palavra tão mal vista, tão desaconselhada, quanto a palavra «velhos». Na verdade, mandam as regras mais recentes que se substitua tão agreste vocábulo por outro menos antipático: «idosos», «seniores», por aí. Mas a substituição tem mais dificuldades do que parece. Com razão ou sem ela, «idoso» parece mais adequado quando se fala de alguém bem integrado na sociedade, de um «cavalheiro idoso» por exemplo, expressão que logo se entende não estar a ser referida a um velho que nos estenda a mão no voltar de uma esquina. É frequente dizer-se que «velhos são os trapos», mas talvez seja mais adequado dizer que «velhos são os pobres». Excepto quando a palavra adquire um acento carinhoso que o contexto esclareça. Porém, é tempo de esclarecer por que motivo esta pequena discursata acerca da palavra «velhos» aparece numa crónica que deve ser sobretudo acerca de televisão e que, de resto quer sê-lo. É que há um período horário em cada dia útil em que os velhos surgem como protagonistas de um ou mais programas de televisão. Os velhos e os equiparados, acrescentemos, esclarecendo-se desde já que estes últimos, os equiparados, são os que foram despojados de emprego e de esperança pela máquina de fazer velhos que é a política que todos os dias nos destrói um pouco mais. E quanto aos tais programas em grande parte protagonizados por velhos, são os chamados «interactivos», isto é, os que permitem a participação de telespectadores por contacto telefónico para que eles possam dizer o que pensam do País onde vivem e da vida que lhes é imposta. Já por aqui se adivinha que não podem ser programas alegres, mas também se entende que sejam programas úteis para a percepção da realidade portuguesa.
«Choro e ranger de dentes»
Mesmo quem não tenha o santo hábito de ler a Bíblia pode ter a vaga memória de que algures no texto atribuído a Mateus, que por sinal é o evangelista mais à esquerda, a propósito ou não do chamado «reino das trevas», designação eufemística do inferno, o santo fala de «choro e ranger de dentes». Pois bem: o que em significativa medida acontece no decurso dos programas interactivos é como que um peculiar choro e ranger de dentes proveniente dos que telefonam para a estação a fim de que, pelo menos, a desgraça ou a indignação que os atinge não fique confinada à estreiteza do seu quotidiano e se torne conhecida. E quem é que pode telefonar para uma estação de TV àquela hora da manhã de dias úteis? Não, decerto, os que ainda não foram atingidos por qualquer rajada de desemprego, isto é, não os que ainda mantêm o seu posto de trabalho e por isso não estão disponíveis para telefonemas pessoais naquela altura: de um modo sumário, digamos que são os desempregados e os reformados quem assim pode intervir nos tais programas. E os reformados são velhos (ou estão velhos se porventura saíram do chamado mercado do trabalho em fase etária anterior ao habitual) e descrevem, telefonema após telefonema, a situação da maioria dos portugueses quando atingem a velhice, ou melhor, quando por ela são atingidos. É um retrato cruel, um quadro de desolação e por vezes de espanto, pois muitos deles não esperavam ser exportados para os territórios amargos da pobreza. Tinham confiado na suposta segurança financeira mínima que haveria de estar garantida pelos pesados descontos suportados durante décadas (quando ninguém os prevenia de que os descontos a que eram obrigados não seriam aplicados a seu favor, de que teriam de vir a ser sustentados por problemáticos descontos nos salários de problemáticas gerações seguintes). Tinham contado com a eficácia do enfim conquistado Serviço Nacional de Saúde para terem os cuidados médicos que a velhice haveria de tornar inevitáveis. Nunca lhes passara pela cabeça que um dia teriam de amparar os filhos sem emprego, sem casa e sem futuro. Por tudo isso e muito mais, telefonam, cada telefonema tendo um pouco o sabor de um grito de dor para quem o faz e de um pedido de socorro para quem o ouve. De um pedido de socorro a que é preciso responder.